terça-feira, 11 de dezembro de 2012

A terra



créditos pela magem: ∗FranJa



A terra é pouca
Não em tamanho
que grande é de muito
A terá é pouca
Não a dão pra partilha
A terra é rica
brota o verde
reserva minério
é toda ferrosa
poeira
secura
achatamento
É barro
Úmida

Sim afirmativo certo
A terra é rica
artigo deluxe
quase não se dá pra pobre
ela copula com o rico
A gente avisa
Ele não presta
Só a quer com usura
pra ter orgasmos no banco
enquanto a envenena
em banhos tóxicos
E o pobre é o enamoradinho
Se ri com um pedacinho
E nela canta
roça
chora
planta
A terra é esnobe
Ela dá as costas
Ela podia ser muita
Que pena que é pouca
Se ela fosse de toda gente
Ia ser muito mais rica

                                                                              Uberlândia___16_11_2012_

sábado, 8 de dezembro de 2012

quase


é de quase
quase que a gente vive
a gente vive de quase
quase amor
quase...
quase pleno
quase...
quase o encontro
quase...
quase suave
quase...
quase soa suave
quase...

quase verão
quase primavera
quase outono
quase inverno
quase solidão
quase...
quase não dá mais
Chega de quase.

Uberlândia 08_12_2012___19:45pm

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Caninos


créditos pela imagem: rafaelm




Os cães ladram
                                               todos os dias
pro ruir das paredes
                               pro estar aqui
querem estar dentro
                                               mas nunca entram
                só num momento de ocaso
vigiam meu sono modo vésper
                sentinelas de irmandade sem pedigree


                Pequenez do quintal absurda
faz grande o afago
                               lamento afável de solidão


Os cães ladram os dias
                               latem a madrugada vazia
Os cães eles choram
                               Mas que bom
                se não chorassem
                                                              eu choraria

Uberlândia, 23/11/2012 – 10:30h

perfeitude


Créditos pela imagem: zuarte bolsas



A gente é perfeito
                               o melhor casal
é que a gente é bonito
                               é que a gente sublima
é que a gente encanta
                               e irradia completude
amor afinidade carinho
                               cumplicidade alegria amor

A gente é perfeito
                               o melhor casal
A gente é isso
                               (mas fatalidade!)
                 quando você está                         
                                                                                              ...longe
a gente fica feliz
                                                                                              quando eu só
quando você só
                                               cada um do seu lado.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Ela, ele, o amor, e eu.


Créditos pela imagem: supercoco

Ele a amava. Era um amor bobo. O que não precisava para aqueles tempos, nem pro que emana quando salta aquelas lembranças. Era uma chata, inconveniente, desnecessária. Nunca havia cogitado antes algo com ela.

Ela era linda! Foi como a descobriu certa feita. Na beleza que emerge na descoberta dos receptáculos de seu gozo. Na sua firmeza. Na sua angústia agridoce. No desfrute da infinitude de seus seios. Nos seus dentes cuidadosos cravejando minha pele.

Ele a amava, e “amava” é o tempo-contradição do verbo. Quem ama, ama de um ponto de partida que não pode ter chegada. Pode se amar no futuro. Pode se amar no presente. Pode se amar desde o passado. E no presente e no futuro. No futuro e depois do futuro. Mas nunca só no passado. Nunca só no presente. Nem nunca num futuro que tem finalmente. O amor desconhece o calendário. Faz pequenina a história. Faz brochar o materialismo. Joga na mesa, em pleno jantar, a inconsistência e a fragilidade das esquematizações, dos sistemas, das teorias. Ele não tem regras ou leis e esfaqueia a obviedade.

Então devo dizer, de sincero, ele não a amava.

Não amava, pois me lembro de seu pior momento. Não foi só por ela, mas tomou cinco comprimidos de uma cicuta de tarja preta pra dormir até depois de todas as manhãs. Ele não amava, pois quem ama quer a vida indefinidamente. E quer o outro pra vida. Mesmo que o outro não queira a vida. Mesmo que a vida não lhe queira com o outro.

Ele a amava, pois era feminino. Ela era masculina. Não era perversão, era só amor. Ela era Ares e ele Afrodite. Marte e Vênus eram. Excitava-lhe a amorosidade essa fúria de guerra. Bem como seus ombros e corpo largos. Ele a desejava até o recôndito da alma e nas paredes em veludo que prosseguiam seus lábios.

Pois bem, com o coração a amava. Nos filmes interrompidos em beijos, amassos e as carícias profusivamente inventadas. Amava com os olhos contemplativos a seu sono, na vigília mais besta por bem nunca noticiada.

O amor por ela, para ele era o ódio. Pois era desespero no espaço de toda separação e reconciliação. Era a vitimização garantida no fluxo hormonal de cada mês. A cada TPM um fim e o soçobrar do orgulho como brinde. A indignidade ladrando no peito. Era um atestado! Um atestado gigante de minoridade e mediocridade voluntárias.

Amava, contudo, quando inseguro enraizava seus dedos nos dela. Na euforia das concessões raras. Na paixãozinha convalescida, decepcionada com as negações tão mais frequentes. As mãos juntas eram para ele seu carinho simbólico. Ela não queria simbolismos. Não queria tomar parte dessa junção, menos ainda lhe permitir significar.

Era ela tudo que sempre quis. Pelo menos havia se esquecido de querer outra coisa. Demorou e demorou a deixar de dividir o tempo em antes dela e depois dela. Era assim que via seu pregresso e progresso, sua volta na linha de seus próprios fatos, que exacerbados despontavam como alfinetes de dentro, na crise asmática de cada uma de suas solidões.

Seu amor era ridículo. Era capaz de vaguear a madrugada pela promessa de absolvição de crimes não cometidos, pelos quais lhe pregaram na testa, em arbitrário, uma nota apenas: “Condenado. Setor de Relacionamentos Humanos. Vigilância Sanitária”.

Ele a amava. Até que decidiu dela fugir passando por três estados e chegando a perder a mala e as roupas no caminho, mas em contrapartida, vendo a ressurgir alguma hombridade há tanto já olvidada.

Não, ele não deixou de amá-la naquele ponto. Era preciso mais algumas estações: passando pelos pontos dos bairros Mágoa, Decepção Depressiva e Ilusão Desiludida.

Não mesmo. Não havia ali deixado de amá-la, pois era um amor de átomo radiativo. Invisível, inchando na destruição de si. Era transfiguração incessante da esperança em cancro molenga, despido de qualquer traço de nobreza, incrustado na lava lascívia da Terra.

É verdade. Ele a amava. Não podia ser eu. Eu que ri pra mim quando ela disse, quando depois de tudo ter se passado, numa ocasião de encontro momentâneo, que podíamos voltar no tempo. Mas ele não volta, só circula o relógio, mas a cada volta completa, aumenta metade de um dia. E a cada duas metades de dia, tem se um novo dia. Que não pode ser como ontem, nem antes de ontem e nem antes dos outros antes.

Isso foi só quando ele havia morrido. Não era ele com quem ela abraçava seu corpo num momento logo atrás. Era eu, só ela que não era capaz de ver. De saber que não podia mais ser ele, depois da poeira se assentar sobre todos aqueles meses. Não podia ser, não dava mais para ser. E é bem verdade que ele não queria ser duro. Era necessidade urgente brotar carne revivida e se deixar perecer. A perenidade que era muito dura, se pode dizer. Então é que foi: eu estrangulei até o sufoco. Não faltaram lágrimas, força, indecisão e um sentimento que não era de perda, mas de perdido.

Mas não teve pena, nem dó. Era um dever e os traumas estavam proibidos para qualquer data vindoura.

Foi assim... ele se foi. Jazeu e tornou pó. Nem vale lembrar mais uma linha.

Devo confessar, contudo, dá menos temor falar de si em terceira pessoa.

Fim.


Uberlândia, 17-22 de junho de 2012.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Manga dos tempos

Créditos pela imagem: Lais Castro ( ex Nuage Bleu)

Sessenta passados, negro, alto, forte, camisa branca, calça preta, uniforme de vigilante. Era imponente. Vindo assim, parecia um bloco de pedra que surge do nada. De certo, veio pra dizer que não era hora pra eu ali estar. Era domingo, não era dia de ficar circulando por aí. De certo era muito rígido em suas funções, não iria me perdoar.

 Sua performance e condição sólidas, no entanto, se liquefizeram em milésimos de centésimos de segundos.
Ele não veio pra dar procedimento à “lei”. Ele só quer uma manga... Não hoje, mas amanhã.
- Será que eu acho uma boa pra fazer suco amanhã.

Digo que o problema é que estão caindo no chão. Ele diz: “É, mas essas que caíram de ontem pra hoje dão pra fazer suco de hoje pra amanhã”. Ele é engenhoso. Faz artesanato dos tempos, usa os três numa fala só, e isso, por uma manga, uma simples manguinha.

O problema dessas mangas que estão esborrachadas no chão, ele diz, que é a contaminação. Essa dos vermes, dos bichinhos, que andam na terra, passeiam pela grama.
Ele tem solução: “Tem gente que tira a polpa da manga e coloca no congelador. Quero ver contaminação aguentar!”.

Joga pedra pra arrancar mais umas. Tira a sacola amassada do bolsa, guarda as frutas. E sai andando por entre os prédios degustando o seu suco de amanhã...

Uberlândia, 18/11/2012 – 14:30h

domingo, 18 de novembro de 2012

Vassoureira


Créditos pela imagem: FernandoOliveira

Tia Sônia Vassoureira. A gargalhada desavergonhada estilhaça os vitrais da intelectualidade. Esbofeteia foucaultianos, freudianos, pós-modernos, marxistas, marxianos, marcianos e quem mais se arrogar de sabido.

Tia Sônia, a vassoureira!? Isso não existe! Não é profissão de gente, diz a jovem plantada debaixo da árvore por dias com livro de contos. Tem razão. Tia Sônia é mais que isso, de fato! Não digo mais que vassoureira. Tia Sônia é mais que gente!

Mais que gente porque ela varre mais que o chão, ela varre o universo inteirinho. Até os cometas e os cisquinhos do chão. Sua vassoura é um cetro deificado, com ele canta Madonna, baila Bee Gees. É seu pedestal microfônico. E é seu amigo. Seu parceiro de dança. O difusor da alegria e o tapa na ordem. Ela é o descompasso. Deixa enrubescido até o reitor.

Tia Sônia, Vassoureira! A boca arreganhada e os dentes mostrando para se afirmar triunfalmente! - Vassoureira da universidade!, faz questão de frisar. Não é qualquer uma. E tem mesmo um ar doutoral.

Ser vassoureira da universidade é ruir as certezas. É debochar o dicionário, os significados formais, a língua culta e tudo mais. É desafogar a expressividade imersa no lodo. É a humanidade florindo onde havia saudades de um arregalo de pétalas.

Tia Sônia é vassoureira. Ela pode ser. Porque brinca com as palavras com a autoridade de quem é estrela de filme. Ela tem carta branca pra blasfemar o roteiro. Faxineira, auxiliar de serviços, isso tem um monte! Isso é pouco pra ela ser. E seria pouco se fosse atriz, cantora, humorista, dançarina ou poetisa. Ela é o que se acha que não pode ser. Ela é VAS-SOU-REI-RA! Entenda! Ela é única e sabe o quão grande é ser isso.

Tia Sônia diz pra procura-la no Youtube. Ela coordena o passo, lidera a dança. É a rainha da praia. – Procura lá!, diz sem vacilar. Dá à vista seu cintilar de talento.

Tia Sônia, vassoureira. Ri-se de tudo. Daqui três meses ela volta. Com o acerto e o seguro desemprego esgotados. Volta pra gente. Fungando profundo e gosto o ar com aroma de erva. Zombeteia os estudantes que não lhe entendem, que não sabem enternecer-se com sua magnitude.

Tia Sônia não deveria estar com uniforme de empreiteira. Ela deveria ser imortal, declarada patrimônio cultural eterno da universidade. Deveria ser tombada! Ou então receber uma cátedra. Até porque quando ela chega a nitidez nos absorve e fica tão claro o quanto a gente é tolo...

Uberlândia, 18/11/2012 – 14:03h

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Sem sinestesia por favor

créditos pela imagem: FernandoOliveira


No oráculo da casa
com a rua na mira
eu li poesia
Sem os olhos
Li com os dentes
a língua
e a saliva
Li rompendo o veludo
a água escorrendo
eu mordiscava a semente

Nem precisei de letras
Só o rubro amarelo numa mão
Roxo-terra noutra
Doce amargo leve
Eu li deglutindo
Não foi sinestesia
Não virei uma página
Nem precisei

Há lirismo demasiado
entre um pêssego
uma goiabada
e a calçada lá fora

- Uberlândia, 16/11/2012 / 13:11h
   Com céu nublado e o sol dando as caras no instante.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

meu moinho

créditos pela imagem: francisLM



Eu tinha um moinho
Não era um gigante
Era só um moinho
Mas eu nunca vi um moinho
Nem nunca vi um gigante
Mas ficava a ver
a dança do grão esmagado
E a vaca levando
E a água levando
E o vento levando
E eu levando
O moinho que eu não vi
E o gigante que não vi

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Doce não é poesia


créditos pela imagem:  Prefeitura de Jundiaí

Poesia não é doce
exposto em feira
cristalizado
caramelado
em barras
açucarado

Não se vende
Não é doada
Nem se doa

Não é prenda
nem dada
emprestada
presenteada
achada
no lixo
balcão de boteco
mercado de pulgas
em bueiro
morando com ratos

Não tem lugar
Nem dono
fiador
credor
não tem juros
Não tem nada!

Não é pretexto bobo
falada ao vento
à espera...
de agrado pro falo

Nem pilha de versos
implodida por um traque

Vômito significa melhor
regurgitar compulsório
Arrochado em vísceras

Não dá garantia
Não aceita
pagamento à vista
cheque pré-datado
boleto pra trinta dias
nota promissória
dezoito parcelas

Está esgotada!
no hipermercado
nas casas bahia

Pois se coisa egoísta
nunca é pro outro
Se fala de outro
é outro que é seu
Suspensão do universo
pro pequeno-burguês
que custa ser gente

Só uma luz
rejubila na troca
que do mundo toma
em conluio malandro  
Pra ser junto do mundo
toda de defeito
na maquinaria
na fórmula
na in/definição

Pois poesia é imperfeita
como a vida há de ser
possibilidades mortas
no labor dos tempos

E se a gente é imperfeito
e a rua é imperfeita
pro coração machucado
na navalha que corta sonhos
Pra palavra ser gente
ela tem de ser rua (e crua)
com coração machucado
e os sonhos na navalha

domingo, 11 de novembro de 2012

...vai nos matar


créditos pela imagem: nathan reznor

A arte vai nos matar
O amor vai nos matar
A beleza vai nos matar
A natureza vai nos matar
A bondade vai nos matar
A humildade vai nos matar

Pra fazer a passagem
Morrer é preciso
assassinar o ego

Como día de muertos
o canto não chora
louva a vida

Virar-mundo

Créditos pela imagem: you can call me Vane



Sorrisos são falhos
Abraços são falhos

Um afago
um beijinho
bom-bocado

Fundinho d’alma
intocado
solitário
monge
eremita
agrisalhado

Um centavo
um trocado
na sarjeta
ignorado

Piche no muro
enlameado
encardido
descascado

Chuva lava
sem brancura
multiação
reações
químicas
incompletadas
complexadas
estranguladas

Apagador e giz
quadro branco negro
reescrever
reciclar
retemperar
Regurgitar não
Sim ruminar

 ...Sou vaca
sagrada
profanada
Em ritual
louvada
Na mesa
Estraçalhada
Fatiada
Iguaria
nada inefável
rumo ao estômago
escatológico tornar
sustento pra grama
verde brilhante
boca adentrar
e retornar
Sou vaca...

Quem sabe será?

Velho pouco
virar muito
reincorporado
renovado
reinventado
ser outro
do micro
macro
uno
vário
virar-mundo

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

(Sonho) nem precisa de mais



I have a dream...
Eu tenho um sonho!
Soa tão sonoro
Tão bonito

Faz lembrança
lápis aquarelável
molhadinho
Deslizando...
mansinho 
em folhas de papel

Gosto da palavra
e a penso
e a escrevo 
tanto!
que confiro
se não a repito
no texto pronto
recém assado 

Provável ter tesão por ela
de tão afrodisíaco
o movimento fonético
olha só:
So-nho
Na vibração silábica
pelos erigem dos poros
sentinelas que ardem
a espreita do oculto
no universo de mim

Coisa maravilhosa
Doce de padaria
significado em guloseima
Salpicadinho de açúcar
massa levinha
e o mordiscar
finda em creminho
amarelado
das pulsões
da psique

Há disso ser
sonho
nem precisa de mais 

Mas é ele um danado
não se dá grátis
sempre escapa
Se tento agarrar
sai de fininho
pro caçador bobo
com redinha de tela
ousando aprisionar nuvem

domingo, 4 de novembro de 2012

Sono safado


Eu tenho trauma do sono. É quando eu perco o controle. O dia inteiro posso me dar conta de quem sou, o que faço, o que quero transparecer, forjar identidades, brincar com o personalismo de minhas personalidades.

Mas quando eu me rendo - e durmo - eu não posso. Sou qualquer coisa. Sou brinquedinho de meus medos, de compulsões ocultas e ocultistas, de meus eus escondidos.

Quando durmo, eu não posso. E daí porque eu tento e tento e tento e pouco durmo. Tenho medo de ser quem eu não quero. De cometer aquela gafe, entregar o jogo pra geral saber que “eu não sou tão bom assim”. Eu tenho receio de dormindo demonstrar que eu tenho medo até do sono, ou que eu sou tão egocêntrico a ponto de pensar o mundo conspirando para e contra mim. Não bastava eu ser a última bolacha do pacote, tenho ainda que me sentir a mais recheada. 

O tanto de “eu” desse texto revela que o digo, não é mais do que verídico, chega a ser quase problema venéreo...

Pois eu lhes digo: sono é o descontrole! É quando você não tem etiqueta, nem ética. Você segura o dia inteiro os gases próximo dos outros, mas dormindo solta um ronco mais alto que trombeta de banda escolar pra casa inteira ouvir. Seu corpo se mexe de um lado pra outro, você baba, respira, sua, sofre, ri, deseja e no frigir dos ovos, ou mais certeiramente, no abrir dos olhos, aquilo tudo ficou perdido, sem consciência, sem lembrança, perdido em labirintos de mente.

O sono é feito a língua pro Barthes, ele é fascista! Te induz a ele sem piedade, quando você nem mesmo o quer! Quando se tem pilhas e pilhas de coisa a ser feita e ele lhe fica a te chamar numa voz doce, envolvente, querendo impor, dizendo que a gente deveria abraça-lo. 

O sono... o sono! Ele é braço direito do autoritarismo das horas tentando impor ordenamento lógico ao nosso cotidiano. Vou lhes revelar: o sono quer a gente feito máquina! Quer nos despir de humanidade. Se o relógio é o caxias cíclico, que dá voltas, faz com que as coisas retornem no tempo dos acenderes e apagares de luzes celestiais, o sono é daquele tipinho impertinente que ajuda a fiscalizar se a gente faz tudo certinho, bonitinho, nos conformes.

Ah, mas quer saber? Eu amo o sono. Ele é delicioso. Ele é mais doce que pudim! Como é boa a noite que eu durmo abraçadinho dele. Fica tudo mais bonito. Sono, você é meu grande amigo. Da canseira, você me faz tão renovado. Me prepara pra um dia novo, de tantas alegrias.

Se eu fosse politeísta, podes crer que serias divino pra mim!

Só que devo revelar... até disso tenho medo. Numa dessas, você se torna Hipnos. E, se me restaura com o  véu noturno, anda implacável ao lado de seu par gêmeo Tânato, que basta querer pra me privar da maravilha luminosa dos amanhãs vindouros.

Pois ora bolas! Eu tenho mesmo é raiva do sono! Ele nunca foi meu amigo. Todo mundo dorme, só eu e uns dois que não. Eu tento me enamorar dele logo no início da noite, tem vez que até antes. Quando eu deito na cama junto dele, ele dá uma de traiçoeiro, arisco, de garota volúvel, de irritadiço, fica a querer me mandar pro chão, pr’outro lugar onde não esteja.

Caprichoso, no dia seguinte vem me cobrar o nosso amor não consumado. O sono é a musiquinha que toca na rádio: “me iludiu e depois foi embora”. Me dá uns pesadelos hora que tô acordado, e quando eu durmo nunca me dá um carinho, um chameguinho, nem uma canção de ninar pra eu poder ser mais sereno.

O sono podia transar comigo. Ele não quer. Só fica a me excitar, a me alisar com strip-tease. No muito me deixa em estado contemplativo com sua genitália. Fica como a rosa do Pequeno-Príncipe, ali perto-distante na transparência vitrificada da redoma, só pra se admirar.

O sono é uma puta! Nunca me beija na boca! Me cobra caro e cumpre protocolarmente nossa foda como a disposição de ingredientes e instruções de uma receita gastronômica.  Bem a calhar, pois banca o chef de cousine, que na hora de me por no forno, só pra ratificar a sacanagem, me leva pro micro-ondas.

É... vou te dizer...

Eu fico mesmo encafifado com o sono! Ele que vá se danar! Nunca rola química entre a gente. Rolo na cama, fecho, abro o olho. Pego um livro. Vou pro computador. Escrevo. Ouço uma música. Apago a luz. Acendo a luz. Deito de um jeito, deito de outro. Tomo remédio tem dia. Tem dia que não... Tenho medo de prejudicar meus outros sonos. Medito. Oro. Faço ginástica. Acaricio o vento. Me angustio com as coisas. Sorrio pra mais umas. Penso, penso, penso, penso... pra cabeça não aguentar mais. Daí eu me canso. Sem nem perceber eu durmo...


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Uberlândia, 04/11/2012 - 01:48h.





quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A tal educação...



A pequena-burguesia quase sempre é retratada como coisa da pior espécie. É o que dizem por aí. Gente sem opinião. Que pula fora do processo revolucionário, para os socialistas. Aquela “gentinha” que quer ascender socialmente para os burgueses de verdade. Protofascista, como recentemente disse a Marilena Chauí em debate recente. Hoje em dia, o termo mais comum usado para ela talvez seja o de classe média. O irônico “classe média sofre” já virou bordão nas redes sociais, talvez expresse bem como se pensa dela hoje em dia.

Lembro do Paulo Freire dizendo que seria possível transcender a condição de classe e estarmos juntos dos oprimidos. Afinal, um e outro, opressor e oprimido, vivemos relações baseadas na opressão. “Ação cultural para a liberdade” era o que ele dizia. Quando lia essas coisas gostava de pensar numa palavra mais além: “libertação”. Tão mais sonora, tão mais bonita, tão mais cheia de vivacidade e que prenunciava um amanhã indefinido, mas potencialmente mais luminoso que essa lua tão cheinha que esta semana mesmo, por essas bandas do cerrado mineiro, estalava no céu.

Não sei se isso é possível. Continuo a acreditar na beleza criadora da palavra, que não está solta no mundo, mas é preciso um pouco de fé, para em meio a tanto martírio por todos os cantos não deixar a esperança secar. De tanto se decepcionar, lacrimejar, até desertificarem as pálpebras.

Em “Educação” (An Education, Inglaterra, 2009) uma jovem de classe média suburbana se mata de tanto estudar. Seu pai a oprime, cobrando-a para que consiga ir para Universidade de Oxford. De um lado, a jovem, amante de artes, literatura, música francesa e um mundo de sonhos. O tédio dos seus dias parece ser algo insuportável. “Todo este país é chato”, chega a dizer. De outro, o pai, que em verdade quer mais que a filha entre para a universidade mais por status social, do que para sua formação, muitos menos para construção de conhecimento.

Tudo, entretanto, parecia bem definido. Parecia uma espécie de “Es muss sein!”  beethoviano (“Tem que ser assim!”) como diria M. Kundera, mas que mal se sustentava.

Eis que “surge”, não em cavalo branco, mas em carro esporte, um homem de meia idade, bem aparentado, com grande poder de persuasão, e capaz de lhe oferecer todas essas coisas que são “seu sonho”. A partir daí, os dilemas começam a aparecer.  Na cena de seu primeiro encontro, o homem dá a entender a problemática central do filme. Quando, a garota lhe diz que conta que vai a Oxford e lhe indaga para onde ele estudou, lhe responde “Na universidade da vida”.

O que vale mais então? A educação formal ou as lições da experiência, ou melhor, do “experimentar”? Sob pressões frente a esse relacionamento e as obrigações escolares, o que deve ser feito?

Mas talvez a grande questão, será que esse desejo do experimentar também já não viria formatado. Um grande desejo de vivenciar um dado prazer, feito a um produto acabado, um desejo do que não está às mãos? Será que esses desejos não são tão frágeis quanto os planos, que sequer são pra si próprio, do pai?

Adorno, quase apocaliticamente  criticava antes dos anos 1960 em que se passa a história do filme, a fruição estética. Haveria lugar para alguma expressividade sincera nessa postura, em que a arte acaba se convertendo num produto para apreciação? Um objeto, contemplativo, a ser adquirido? Há alguma solidez nisso? E se houver, qual é o risco de se despedaçar em instantes e perder-se o ar? Mas, por fim, e se assim for há algum problema nisso? Precisamos mesmo de uma arte superior? Se podemos comprar alimentos para o estômago, porque não para alma? E, essa Arte, com “A” maiúsculo é tão boa assim?

Perguntas retóricas... de se perder nas reflexões, nas possibilidades. Enquanto isso, se vive os dilemas, cada um a seu modo. E o mundo gira, sem parar... Com educação ou não. Prefiro acreditar que a da vida e a formal são imprescindíveis, cada uma a seu modo, todavia...

domingo, 28 de outubro de 2012

Kafka e Crumb




Semana passada, assisti o documentário Crumb (1994, 120 min., direção de Terry Zwigoff). Coincidentemente, por esses acaso, foi parar em minhas mãos dias depois o livro em quadrinhos Kafka de Crumb. Acho que veio bem a calhar essa ordem dada pelo cosmos...

Conheci Crumb pelas muitas referências ao mítico “Fritz, the cat”, o gato fofinho, porém subversivo, drogadão e obsceno à cara do estereótipo que costumamos ter dos anos 1960. Lembro ainda do álbum Cheap Trills da banda Big Brother & The Holding Company (que, além do que pouco sei era banda  em que cantava Janis Joplin, antes da carreira solo).

Blues é uma coletânea de quadrinhos muito bacana que fala da relação do autor não só com este ritmo especificamente, mas com a própria música de modo geral, como: suas andanças como colecionador de raridades do blues em pequenas cidadezinhas do sul estadunidense e suas experiências com a banda - que tocava em eventos como casamentos, formaturas e coisas do gênera (aqui no Brasil, a expressão máxima são as tiazinhas em fim de noite dançando freneticamente a canção do Cupido ou então se banhando ao brilho da lua).




Essas poucas referências já criam a ideia de um Crumb, que no mínimo seria uma figura muito singular. Mas, Robert Crumb é gente muito mais excêntrica do que esse lero-lero que mandei até aqui. Muito do documentário é focado em sua família, destacando-se os dois irmãos, os quais fazem Crumb parecer poço de águas tranquilas. O mais velho, com uma espécie de fobia social, ao ponto de não sair do quarto há décadas e o outro irmão, uma espécie de mestre iogue fanático, que se deita em cama de pregos e tem hábito de engolir um cordão e puxá-lo novamente para "limpar" suas entranhas. Rejeitados na escola, costumavam estar juntos sempre. Foi com seus irmãos "estranhos" que muito do talento de R. Crumb com os quadrinhos começou aflorar. Chegaram a editar quadrinhos artesanais conjuntamente.

 Crumb gostava de desenhar pessoas de modo bem característico. Tinha medo, rejeição e raiva do feminino, apesar de deseja-las. Mas é relevante notar que suas mulheres são no mais das vezes figuras poderosas, com formas que, por sua vez, costumam jogar pra escanteio a padronização da beleza feminina. A despeito das críticas, em relação a isso, acho que Crumb em sua sinceridade e maluquice, mais estava a par de descortinar preconceitos latentes na sociedade, do que propriamente de ser um misógino, como dizem, ou algo do tipo. Num quadrinho, que integra “Blues”, de uma página que ele faz corar de vergonha qualquer militante libertário que no fundo, no fundo se revela machista. Faz refletir um pouco sobre nossa hipocrisia, e a necessidade de construirmos outras maneiras de agir, mais sensíveis à alteridade e, consequentemente, do modo mais pleno no respeito ao outro.

Kafka era também homem de fobias. Cheio de receios quanto a mulheres, só se permitiu amar duas vezes (ou para ser mais certeiro, uma vez e meia). No mais, as esquivava através de proposições de namoro à distância, quase restritos a cartas, e tinha costume se depreciar, se dizer indigno da vida e da felicidade. 

Era judeu. Isso no início do século XX, num país dividido entre checos e alemães, mas com ambas as partes antissemitas. Pra piorar não se reconhecia judeu, checo ou alemão. E, nesse sem fim de contradições, queria largar tudo e ir pra Palestina, que então judeus começavam a migrar, ao passo que negava seu próprio judaísmo.

Como Crumb, era oprimido pelo pai, um comerciante, que achava que o filho seria uma desgraça. Kafka chegou a escrever um livro que seria sua Carta ao Pai, no qual lhe dizia por que era tão difícil a relação. Contudo, temeroso que era do pai, não a entregou pessoalmente. Deu-a para mãe, que logo lhe devolveu. Kafka não parecia ser homem de forças...

Em determinada ótica Kafka e Crumb se confundem. Se o primeiro é tido como figura reservada e contida. Crumb, por sua vez, chega a ter sua vida tão publicizada a ponto dessas suas fraquezas, extravagâncias e perversões sexuais serem expostas em documentário que participa ativamente.

Contudo, esses quadrinhos que procuro tratar, não são trabalho solo de um Crumb inspirado, e há muito do roteirista David Zane Marowitz com primoroso texto e trabalho de pesquisa e elaboração. Chega ser uma lição de criatividade de como se construir uma narrativa articulando elementos biográficos com a obra do autor. Sucessivamente, contos e livros como “A Metamorfose”, “O Castelo”, “O Processo” e “A Toca” ganham sentido para uma interessantíssima caracterização do personagem principal que é o próprio Kafka. Ou seja, ao contrário do que se poderia imaginar (e eu quase tinha certeza) não é uma mera compilação de textos transmutados em quadrinhos, como costuma ser no mais do mesmo. Mais que isso, é uma belíssima biografia enriquecida com o traço certeiro e afinada com o universo kafkiano que só alguém com a personalidade insana de Crumb poderia realizar.


Aliás, por falar em kafkiano, termo tão recorrentemente usado quase beirando ao senso comum, é algo discutido pelos autores. O tal “kafkiano” seria mal interpretado pelos “açougueiros da cultura moderna” a ponto de ser tido como “existencialista”, “uma teoria do absurdo”, “o caos”, ou mesmo “a busca incansável de Deus” (como queria o amigo que publicou, post mortem, a parte de sua obra então inédita). Para Crumb e Marowitz, kafkiano, é mais do que isso, mesmo que tenha muito desse ar melancólico e de autocondenação, é dotado de humor e que tem a “intricada ironia judaica que se esconde no corpo e obra de Kafka” (p. 11).

Dentre semelhanças (e diferenças), Kafka e Crumb se associam por serem reversos à normatização. Não se enquadram na imposição de valores, na rigidez dogmática das formas de agir, nem aos seus próprios tempos. O louco Crumb, do documentário, chega a revelar que apesar de ter vivido literalmente a lisergia sessentista, não se adequava muito àquilo e ao contrário das dicas de como poderia se tornar mais atraente e “comer quem desejasse”, não aderiu ao visual hippie em voga. Preferia trajar seu chapéu e ternos “antiquados”.  Kafka era frágil, vegetariano, com mil e uma doenças, cheio de manias. Tudo aquilo que não queria a virilidade daqueles tempos de eugenia racial e culto ao corpo brotando por todos os lados.

Considero a obra de um e outro como questionadoras do mundo e não à toa Kafka, que chegou a ter sua obra censurada pelos estalinistas, renasceu das cinzas por sua constante crítica ao poder e autoritarismo no alvorecer da Primavera em Praga.

Rejeitam, cada um a sua maneira, o absolutismo da realidade (ou a imposição de uma dada forma de realismo), e apesar de epidermicamente aparentarem serem controversos, podem ser lidos como reflexos espelhado. Em tempos que os projetos com perspectivas diferenciadas para o mundo encontram-se abalados, caras como Kafka e Crumb podem nos ajudar a matutar de um jeito diferente...